Chegou assim cheio de flores nas
mãos. Nada de verbos, nada de adjetivos, nada de riso... Foi assim, então, que
ele chegou ao meio daquela tarde enchendo minha vida de cores, beijos e
abraços. No fundo era bem mais que isso, era a tentativa de resgatar os dias de
sol que passamos juntos. Apesar de que os seus dias molhados e cinzas eram os
seus dias favoritos.
Depois quis romper todo aquele
silêncio, falou um pouco das tuas incertezas, disse que sua vida só tinha
sentido depois de ter me encontrado. Falou das possibilidades que eu tinha na
estante de ter assuntos interessantes ao longo da vida. Disse que ali haviam palavras misturadas e autores que “não se bicavam” lado a lado [referindo se aos
livros filosóficos]. Fez uma relação entre os meus livros e os livros que já
tinha lido na vida. Começou a ler fragmentos de alguns livros e lia em voz
alta enquanto eu, já na cozinha, preparava o café.
“E não é mau que as coisas nos encontrem
outra vez todo dia e sejam as mesmas”. Essa foi a primeira frase
que ele se colocou a ler e que se misturava com o cheiro do café. A frase de
J.Cortázar, o cheiro do café e sua presença iam colocando cor naquela tarde que
até então não passava de mais uma tarde de um domingo morto, todo cinza com
seus ritos de dia de domingo. Do nada assim na cozinha me bateu uma alegria no
meio dessas palavras todas que ele ia lendo com seu jeito meio grosso e sério
de ser. Com seu jeito que não combinava com a leitura, mas que pra mim
combinava, justamente por não combinar. Era desajeitado o seu grosso modo de
falar, a sua voz forte e cadenciada recitando frases. Eu tomava o café e olhava
para as flores sobre a mesa. E eu não
olhava muito pra ele, justamente pra não
o deixar sem graça. Simplesmente porque estava bonito ele lendo aquelas frases
todas.
“Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe,
mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade
de não querer parar também. Tá me entendendo? No final da tarde, quando aquele
sol tímido ia partindo veio essa frase de Caio Fernando Abreu. Ele então ficou
repetindo isso umas 12 ou 15 vezes andando de um lado para o outro da sala até
decorá-la. Deixou o livro sobre a mesa e pegou mais um café. Pensei que ia
querer comentar a frase, que sem dúvida alguma é uma das genialidades do Caio.
Pulando a fase deprê , dos chás, daquela coisa “amigo porra louca” que há em
Caio,o resto eu fico com tudo. Ele me pediu pra levar o livro, pediu também se
ele poderia ligar mais tarde pra saber como eu estava. Eu falei que o nosso
tempo passou, e que o rumo,agora, é de cada um. Que é besteira acreditar que lá
na frente seremos felizes. Se fosse pra haver essa tal felicidade,se daria ali
naquela hora. Nossa tempestade nunca passou e nem vai passar, porque enquanto
teve dias ensolarados, apenas eu quis o mar, o barco, a vela e toda a poesia e as músicas da relação... Eu pulei de cabeça
enquanto você se protegeu de um fator
que era impossível penetrar diante de todo o sol da nossa relação. É isso, estamos numa tempestade,
encharcados de lamas mentirosas e
discursos pintados em paredes de ilusão. E você bem sabe que essa tempestade
está dentro de você, ela não está em mim. E ela não vai nunca acabar porque em
se tratando de relação você gosta do vento forte que chega levando tudo, gosta
das ondas altas que agitam o mar, gosta da enxurrada que arrasta tudo pra outro
lado. Você gosta do risco de uma relação, dos rabiscos de um poema feito em
mesa de bar, do sexo com briga,do grito cara a cara, das coisas do seu jeito.
É
um verdadeiro tormento tentar remar contigo nesse teu barco que vai acabar
virando nos impossibilitando de chegar a algum lugar. Preciso esquecer nossos
sonhos de uma noite de verão, preciso esquecer desse seu jeito de conversar
comigo, desse seu jeito de querer me ouvir e de gostar de me ouvir, preciso parar de querer
entender e tentar colorir os seus dias tristes. Eu não daria conta, meu mundo é
outro. Um tanto chato por tanta poesia, por tanto colorido que insisto em
colocar nele, um mundo quase imaginário dos romances que ando lendo pra ir
preenchendo, pra ir levando e ir vivendo, sem apenas existir. Isso tudo pra ver
se eu chego a algum lugar, ainda que sozinho, contudo cheio de paz e
esperança...
Saiu assim tão leve da minha casa
com o livro nas mãos, o avistei da janela. Andava quase que levitando, com
aquela cara de despreocupado, cara de um rapaz feliz. Só eu sei que dentro dele
havia o peso de me carregar, ainda, em seus pensamentos.
2 comentários:
"Você gosta do risco de uma relação, dos rabiscos de um poema feito em mesa de bar, do sexo com briga,do grito cara a cara, das coisas do seu jeito". Esse texto foi escrito baseado em mim? Chocado. Adorei.
Tocante, bonito e desesperado... Rsrsrs.
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